quinta-feira, 17 de abril de 2008


domingo, 13 de abril de 2008

A CONTRA CULTURA CRISTÃ

Conceituando a contracultura cristã

O termo “contracultura” identifica os movimentos que se desencadearam a partir da década de 1960, quando jovens se rebelaram contra o conservadorismo nas sociedades “avançadas” do ocidente. Mas o termo pode caracterizar todos os sentimentos de contestação ao modelo vigente em dado momento histórico, uma ruptura com o que é imposto pelos convencionalismos e passivamente acatado pela massa.Rastreando a História, encontramos diversas “contraculturas” que muito significaram em suas épocas e permanecem relevantes. Um olhar honesto encontrará, por exemplo, na pessoa e vida de Jesus e nas motivações iniciais do Cristianismo, uma inspiradora negação ao convencional. Jesus fez discípulos em um contexto singular. Sua presença na História coincidiu com uma “plenitude dos tempos”, quando a religião judaica, a cultura grega e a política romana careciam de um nexo mais profundo. Ele deu novo sentido aos que identificaram na nova doutrina um eixo existencial. Mas não foi apenas nos argumentos e formulações teológicas que o Cristianismo provou sua excelência. A nova fé exigia do converso um outro olhar exterior e outra atitude interior.O “Sermão do Monte” (Mt 5-7) sintetiza essa exigência e fundamenta aquilo que ousamos chamar de “contracultura cristã”; nele Jesus desconstrói dogmas.Primeiro, em sua Teologia. Deus se revela àqueles cuja atitude interior é imune aos preconceitos e domesticidades —os “limpos de coração”; é o Pai dos que focalizam na paz tanto suas estratégias quanto suas atitudes mínimas e imediatas, e cuja magnanimidade interior gera uma atitude proativa em relação ao próximo.Segundo, para Jesus a sociedade é insossa e tenebrosa. Poucos são os que se engajam na originalidade e excelência; a porta da hipocrisia, da imitação e da despersonalização é larga. Não bastasse isso, tanto o indivíduo quanto o conjunto social são envenenados por uma religiosidade formalista, exterior e propagandista. Jesus a supera: “ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo”: odiar ou ofender é tão perigoso quanto matar; submeter a mente a devaneios indizíveis é tão imoral quanto adulterar; ausência de firmeza e responsabilidade no falar é tão repugnante quanto mentir. Jesus troca o Talião pelo perdão. Uma sociedade que semeia vingança colhe sangue; ser diferente é semear reconciliação. Aliás, o Talião é remodelado por Jesus: “da forma que julgardes, sereis julgados; na medida que medirdes, sereis medidos” — autocrítica gera aceitação do outro. Ele não diz que a religião é o ópio do povo, mas desconfia de religiosos “geneticamente modificados”: espinheiros prometendo uvas, abrolhos oferecendo figos e lobos travestidos de ovelhas.Terceiro, em sua visão de História. Ele não cultua imperadores, militares, empreendedores ou líderes; seus heróis são aqueles que mandaram pouco e serviram muito — os profetas: contestadores, não conformistas (seus ideais eram mais nobres que as rotinas de seus contemporâneos); pagaram preço altíssimo: injuriados, perseguidos, torturados, assassinados. E o Mestre estimula seus discípulos a peregrinarem nessa terra sem configurarem seus ideais com as categorias do sistema vigente, para que a indignação de ver o homem dominado pelo homem seja não apenas uma motivação existencial, mas uma atitude cotidiana: como a mais elementar necessidade biológica; “fome e sede de justiça” mesmo que isso resulte em perseguição, marginalização ou morte. Mas a contestação de Jesus não incorre no erro comum às demais manifestações contraculturais, que desandaram para comportamentos viciosos e inconseqüentes. Jesus não propõe uma atitude amorfa e suspensa ao acaso. Ele assevera: “eu não vim destruir a Lei, mas cumpri-la”. O discurso é encerrado com a mesma advertência: “é insensatez construir uma casa na areia; prudente é quem edifica sobre a rocha”. E adverte, contestando a falsa moralidade do servilismo social, que em sua “contracultura” a moralidade individual deve exceder à dos domesticadores sociais.É importante ressaltar a relevância do discurso e atitude contracultural de Jesus para hoje. Para alguns é o capitalismo que envenena o ser; mas Jesus e os apóstolos foram além: é o “mundo”, não importa que regime político-econômico se impõe. E não há, até o presente, modelo ou alternativa tangível que supere ao capitalismo (a história do comunismo ficou marcada por violência, crueldades, atrocidades e “taras”, como lembra o filósofo marxista Leandro Konder). Jesus não diz que o sistema será transformado (sua utopia estende-se ao Reino dos Céus); mas cabe ao indivíduo galgar uma excelência moral que o transcenda.Na Ética de Jesus, cooperação supera competição e conflito —os quais acirram rivalidades, trapaças e opressões. Jesus fala de amar ao inimigo, e não apenas aos que nos fazem o bem; fala de estender amor a todo ser humano, e não apenas aos que residem em nossa circunscrição de interesses e afetividades. E é preciso semear a excelência: oferecer a outra face, ceder a capa, andar a outra milha.A gênese dessa atitude é a Regra Áurea (“faça aos outros o que quer que te façam”), sem sua deformação (que Erich Fromm chamou de “Ética da Probidade” — atitude de indiferença: “não me incomode que eu não te incomodo”, significando maior distanciamento entre as pessoas). O “homem burguês” enfrenta, segundo Konder, exigências contraditórias: “cultiva relações humanas verdadeiras para tentar superar a solidão, mas também precisa se servir utilitariamente das pessoas, manipulando-as, para alcançar os objetivos que a ideologia dominante define como essencial: vencer na vida”. Combina “Regra Áurea” com “levar vantagem em tudo”. No discurso e atitude de Jesus o dinheiro não é essencialmente ruim; mas quando seu cultivo torna-se mais importante que a celebração da vida, faz do homem um idólatra. Sua declaração de que a vida e o corpo são mais importantes que a comida e a roupa afronta aos mecanismos e hábitos de consumo.Prestamos atenção à publicidade (o irreal que objetiva o lucro) e ignoramos que ao lado do outdoor há uma cena real, de crianças mergulhando no lixo em busca de comida. E, ao esbanjarmos o que temos (no Brasil, mais da metade do lixo é comida!), somos não apenas coniventes, mas também propagadores da injustiça —e ainda nos consideramos cristãos!A Ética de Jesus é contestadora e denunciadora. É para os que olham para as aves do céu, ostentando apenas a liberdade, o ser, a plenitude; é para os que olham os lírios do campo, simples — sem corroerem a si mesmos e ao próximo numa insaciável avidez que petrifica o coração, coisifica o ser e banaliza a existência. É para quem enxerga a vida poeticamente. Nos tais há uma inquietação interior: amor, dedicação e atenção genuína aos que são privados dos mais elementares ingredientes da dignidade.A vacina contra a mediocridade é o amor. É possível cultivar amor genuíno num ambiente de falsas cortesias? Para Erich Fromm, “um fazendeiro, um operário, um professor, e muitos tipos de homens de negócio, podem tentar praticar o amor sem deixar de funcionar economicamente”. Mas é preciso ser cético diante da moderna manipulação de virtudes. Bolivar Costa observou que valores como “honestidade, lealdade, frugalidade, etc, antes de constituírem qualidades morais, representam capital potencialmente aplicável”. Já a Ética contracultural de Jesus propõe o cultivo de virtudes, motivadas não pelas circunstâncias, mas pela pureza interior, para a qual a recompensa é a excelência moral e a certeza de estar cultivando o bem comum.Além dos limpos de coração, dos pacificadores e dos famintos, sedentos e perseguidos pela justiça, Jesus elenca outros “bem-aventurados”: os humildes de espírito, cuja grandeza não é reconhecida por sua geração; os que choram, semeando humanidade e sensibilidade em um ambiente de teatralismos sentimentais; os mansos, porque seu ritmo moral não acompanha o termômetro das circunstâncias, e sua originalidade não é assaltada por exterioridades; e os misericordiosos, que alimentam esperanças e utopias, mesmo quando seus mais sádicos oponentes são justamente os que os rodeiam.Enquanto egoísmo e hedonismo programam cérebros e corações de consumidores, a voz de Jesus ecoa falando de “negar-se a si mesmo” e de autocrítica: “se o teu olho te faz tropeçar, arranca-o; se tua mão te faz tropeçar, arranca-a” —se nosso foco (olho) e ações (mãos) concentram-se no acessório, e não no essencial, somos apenas parcialmente criadores, algo em nosso interior é inútil ou até danoso, e urge ser eliminado. Nossa sociedade consome supérfluos. Muitas intrigas pessoais surgem de detalhes. Somos coisas pervertendo tudo que adorna a vida e embeleza o ser.Passados dois mil anos, as palavras de Jesus continuam válidas e relevantes. E, embora nos emocionemos no cinema com cenas que interpretam sua Paixão e sofrimento, continuamos a crucificá-lo em nosso cotidiano absurdamente materialista, consumista e cheio de complexismos, e com nossa visão convencional, não crítica e indiferente.

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